Maria Brasil - A Pátria no Divã

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“Chora, a nossa Pátria Mãe Gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil”
João Bosco – O Bêbado e o Equilibrista
Ela chegou a um Dia de Mutirão, onde nossa clínica atende gratuitamente pessoas com poucos recursos financeiros, para avaliação psicológica.
Isso é muito importante de citar, pois ela, que chamaremos de Maria Brasil, provavelmente nunca teria acesso a uma clínica particular se não fosse por esse tipo de iniciativa.
Cheguei a ouvir colegas criticando a ideia, dizendo que atender de graça desvaloriza o trabalho, prejudica a clínica, etc., etc...
Maria é a confirmação da besteira dessa crítica. Chegou ressabiada, atendendo a um minúsculo anúncio em um jornal de bairro. Achando que análise era coisa de grã-fina, e eu dolorosamente concordei.
Mas estávamos lá, nesse microcosmo, para quebrar esse tabu. Fiquei abismada com a história que ela trazia: era a irmã mais velha de prole de seis filhos, nascida e criada em uma capital do Nordeste.
Não conheceu o seu pai, nesse país sem Pai. Com cerca de cinco anos, já tinha a responsabilidade de cuidar dos seus irmãos. Ficava em seu casebre, ouvindo o choro de fome das crianças, no escuro, pois não havia luz elétrica. Não se lembra ao certo, mas o candeeiro caiu atrás da cama, iniciando um incêndio que destruiu a maloca. As crianças foram salvas com ajuda dos vizinhos. A mãe responsabilizou-a pelo ocorrido, e a partir daí, passou a abusar fisicamente de Maria de forma regular e implacável.
Aos sete anos, fugiu de casa, não aguentando os maus tratos. Poderíamos imaginar nesse ponto a escalada de tragédias das meninas de rua: drogas, prostituição, marginalidade. Maria Brasil não se rendeu a nada disso, aprendeu a fazer as valiosas amizades e encontrar os inúmeros anjos da guarda que a vida sempre põe no caminho de quem luta. Conseguiu até arrumar um jeito de olhar pelos irmãos, levando comidas e roupas quando aquela bruxa, supostamente sua mãe, não estava em casa.
Foi adotada alguns anos depois por uma madrinha que a trouxe para São Paulo. Trabalhou e trabalha, como tantas filhas do Nordeste, como empregada doméstica, babá e faxineira. Estuda à noite. Vincula-se às patroas e mulheres mais velhas como se fossem a mãe que nunca teve, para, na primeira incompreensão e indelicadeza, ficar profundamente magoada, o que acaba gerando mais incompreensão e rompimentos dolorosos.
Com os homens, a situação não é melhor: a ausência de pai deu aos homens uma aura de inatingíveis, ou mesmo de ameaçadores. Os medos de abuso da menina de rua permanecem e ela não consegue arrumar namorado. Expliquei para ela como funcionava essa coisa de grã-finas, que era a análise, e que ela me pagaria uma quantia simbólica, que representava a energia trocada no processo: o terapeuta dá o seu saber e a sua escuta; ela daria o seu valioso tempo (trabalha de dia e estuda à noite, outra coisa que demonstra seu valor), e o seu dinheiro, representando um investimento nela que ninguém fizera antes.
Quando começamos o processo, ela mesma se surpreendeu com a torrente de lágrimas que apareceu nas sessões. Ela mal me cumprimentava, já começava a chorar, o que teve por si só uma função curadora: lágrimas de saudade, de humilhação, de raiva e de abandono encheram a sala nos primeiros meses de tratamento, e eu me senti enxugando tanto as lágrimas quanto o susto com a vida, que parecia sempre traiçoeira, sempre pronta a lhe tirar o pouco que conquistava. Desconcertada, ela dizia que não queria "depender" da analista, o que eu devolvi que na verdade ela tinha é muito medo de amar o Outro, no caso, a analista, para em seguida ser mais uma vez abandonada. E o medo de sê-lo era tão grande que ela mesma acabava provocando a briga que levaria ao rompimento.
Trabalhamos com uma técnica chamada "Jogo de Areia", cada vez mais utilizada por analistas junguianos, em que usamos miniaturas de bichos, de pessoas, de tudo o que há nessa vida para representar o Inconsciente e o que a cliente precisa trabalhar em análise. Ela escolheu as miniaturas que representavam a sua falta: a mãe-cangurú com seu bebê dentro da bolsa, junto ao seu corpo, a menina brincando com sua boneca, o bebê dormindo quentinho dentro do berço. Tudo o que ela veio recuperar, pouco a pouco.
As pessoas começaram a notar que a sua autoestima melhorava, seu rendimento escolar também, e, pela primeira vez, ela deixou de sentir-se uma órfã solta no mundo.
Para encerrar vou trazer um sonho, reproduzido com a anuência de Maria Brasil, que representa toda a beleza de seu processo:
“Aparece a sua mãe, que lhe fala mal e joga uma pedra nas costas. Ela rola no chão e finalmente fala mal a malvada de idiota. Ela entra na casa para pegar um chinelo, calça o da mãe, que a fala mal de um nome tão feio que nem consegue pronunciar. Responde abalada, um "não me fala mal", e vai embora chorando. Muda a cena, há uma confusão na rua. Uma mulher joga nas suas costas um caco de vidro, que produz um corte do seu flanco direito. Sai muito sangue. Duas senhoras lhe acodem, uma lhe fala umas palavras fazendo cessar a hemorragia, fica só a dor. Entra numa igreja para agradecê-la, mas a mulher faz sinal com um não com o dedo. Ela sai da igreja".
Não vou me estender na interpretação do sonho, que é muito rico e cheio de símbolos. Vou apenas destacar que ele representa a jornada de transformação de Maria Brasil: expulsa do Paraíso da sua infância por uma mulher que nunca conseguiu ser a sua mãe, e que a expulsou com xingamentos e ofensas profundas à sua autoestima e feminilidade.
O caco de vidro e o corte no flanco representam a ferida que a trouxe ao tratamento, a hemorragia o choro e a perda constante de energia determinadas pela ferida não tratada. Acho que nada representa melhor a ferida que o processo analítico vai abordar que essa ferida, sempre sangrante, sempre drenando energia valiosa para a Consciência.
As duas senhoras e a igreja representam a madrinha e a analista, figuras maternas substitutas, que a levam para o recolhimento e a limpeza de alma que a igreja representa. É como um processo sagrado de cura, e a Igreja, bem se sabe, são femininos. O não da senhora, que a manda embora da igreja, representa que, findo esse processo de cura, ela deve prosseguir a sua vida como a adulta, sendo a sua própria mãe, sem outras mães substitutas.
Ela se emocionou muito com essa interpretação. Hoje ela continua elaborando todo o processo, mas já se nota um despertar de sua feminilidade, nas roupas mais provocantes e na beleza que ela começou a ter, uma beleza e uma feminilidade mais duradoura, porque vem de dentro, não de fora. Um velho analista descreveu a análise como "Uma terapêutica como nenhuma outra". A fala estancando a hemorragia é uma imagem belíssima dessa terapêutica como nenhuma outra.
Pena que seja ainda tão cercada de preconceitos e desinformação. Dividimos essa experiência porque sentimos que muita gente pode se identificar com esse relato, e quem sabe, começar a cuidar de suas próprias feridas, nessa jornada que é a nossa vida. Nossa vida imensa. Maria Brasil está em todos os cantos de nosso jovem país, que precisa com certeza de muitos bons divãs. Nesse ano de voluntariado, talvez uma forma de sermos voluntários é abrir um espaço em nossos consultórios para atender a Maria Brasil, para que em nossa Pátria Mãe Gentil chorem menos as Marias e Clarices. Pois, como diria João Bosco:
" A Esperança Equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar".

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